O Poço
Donizete Galvão (1955-2014).
Compartilho.
O poço
1
O poço não é um buraco com água a céu aberto,
mas cristal líquido, cravado no tijuco cinza.
Cada dia o poço é um e está mudado em outro:
à custa de tanto uso, cada manhã mais novo.
Sempre outra é a dança dos círculos até
a borda,
que pouca pedra basta para infinitos movimentos.
A primeira água do poço não serve para o pote,
pois sempre há cisco, insetos ou pele de ferrugem.
Entretanto, o fundo do poço tem belezas de
parto:
a mina lança brotos de água e insufla areia fina.
Se à noite chove, o poço turva-se como quem morre.
Não amanhece espelho e sim buraco com água suja.
2
Beber água do poço,
direto, sem caneca, exige tento,
pois a concha da mão não basta para quem tem sede.
Um modo elegante de para o poço fazer reverência
é tirar o chapéu e mergulhá-lo, agora mudado em copo.
O suor pode botar gosto de sal na água doce do chapéu,
mas o que refresca a garganta, também a cabeça esfria.
Outro modo, é quando há por perto folhas de inhame.
A água desliza no verde com
sua película de prata.
E as gotas, na corda bamba, quais aquáticas bailarinas,
bailam tão puras, que a gente sente pena de bebê-las.
Mais um modo, é como o papa deitar-se de corpo inteiro:
a boca beija
a água e, do fundo, outro olho nos enxerga.
Enquanto se engole a água, as costelas roçam o chão.
Não se sabe se o pulsar é dela, terra, ou dele, coração.
(in "As Faces do Rio", Água Viva Edições, 1990)
Carlos Drumond de Andrade - Que país é esse?
EM 1980 O POETA ESCREVEU ESSE POEMA!
Agora me digam os Poetas não enxergam mais?
Drummond falou do Rio Doce também nos anos 1980.
Que País É Este?
1
Uma coisa é um país,
outra
um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.
Uma coisa é um país,
outra o confinamento.
Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno "Avante"
— e desfilei
de tênis para o ditador.
Vinha de um "berço esplêndido" para um "futuro radioso"
e éramos maiores em tudo
— discursando rios e pretensão.
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra um monumento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
(...)
2
Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos
árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São
Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.
Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.
Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do
que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.
Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,
semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,
sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,
vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,
senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,
bebemos cachaça e brahma
joaquim silvério e derrama,
a polícia
nos dispersa
e o futebol nos conclama,
cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,
pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.
(...)
Publicado no livro Que país é este? e outros poemas (1980).
In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 1980
POEMA DO MILHO
©CORA CORALINA |
O menino que carregava água na peneira - Manoel de Barros
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar
um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar
os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo
tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até
fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas
peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
Telha de vidro - Rachel de Queiroz
Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...
A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...
Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda
de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que - coitados - tão velhos
só hoje é que conhecem a luz do dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.
Que linda camarinha! Era tão feia!
- Você me disse um dia
que sua vida
era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você não experimenta?
A moça foi tão bem sucedida...
Ponha uma telha de vidro
em sua vida!